A encrenca nascente do Vietnã já levava sua assinatura. Durante os dois anos e dez meses de seu governo, fez discursos espetaculares pela liberdade e pela paz, mas o mundo esteve mais perto do que nunca de acabar, incinerado numa guerra nuclear resultante da crise desencadeada quando a União Soviética instalou secretamente mísseis com ogivas atômicas em Cuba.
Tantos filmes depois, muita gente conhece os principais lances dramáticos: os mísseis clandestinos são fotografados por aviões espiões, Kennedy manda fazer um bloqueio naval em volta de Cuba e navios de guerra soviéticos vão avançando, avançando, até ficarem literalmente a dezenas de metros dos americanos, quando Nikita Kruschev recua, temeroso das terríveis consequências (e também tendo obtido certas concessões).
Jackie — viagem sozinha à Índia — A maioria de suas roupas era feita por um costureiro baseado nos Estados Unidos desde a campanha presidencial do marido, que havia concorrido com Richard Nixon. Na época, disse que não queria aparecer usando “roupas de Paris enquanto a senhora Nixon faz as suas na máquina de costura” (Foto: AP)
Uma história menos pública da época dessa crise revela outra camada das narrativas em torno de Kennedy: o casamento com a fina e eternamente impecável Jacqueline não tinha nada de arranjo de fachada. Quando soube que seria mandada para longe da Casa Branca, alvo primário numa guerra nuclear, ela não aceitou. “Vamos todos ficar aqui. Mesmo se não tiver lugar no abrigo antiaéreo da Casa Branca, ficarei no gramado”, disse. “Quero ficar com você, morrer com você. E as crianças também.”
Que mulher expõe os filhos ao risco de um bombardeio nuclear? Uma mulher loucamente apaixonada e num dos piores lugares em que poderia estar nessas circunstâncias: casada com um homem de libido hiperativa, criado pelo pai desde menino a buscar relações constantes e variadas, a maioria delas coisa de meia hora entre conhecer, conquistar e consumar, algumas mais longas, umas poucas incrivelmente complicadas – a amante que também se envolveu com um chefão mafioso, a casada com um medalhão da CIA, a que espionava para os alemães, a que era Marilyn Monroe.
PARA MOSTRAR A “ELES” — “As mulheres dos republicanos vão estar com casacos de visom e pulseiras de brilhantes. Vamos mostrar aos texanos o que é realmente bom gosto”, propôs Kennedy ao pedir à mulher que usasse seu tailleur mais chique, um híbrido cor-de-rosa feito numa butique de Nova York com tecido e acabamentos mandados pela maison Chanel. Jacqueline não quis se trocar para a viagem com o corpo do marido. Desceu em Washington de mãos dadas com o cunhado Bob Kennedy e arrependida por ter lavado o sangue do rosto e do cabelo. Queria ter mostrado bem “o que eles fizeram” (Foto: AP)
A morte precoce de Marilyn combinou-se ao assassinato do presidente para alimentar a torrente de teorias conspiratórias que continua a jorrar até hoje. O mais provável é que a deprimida atriz tenha sido apenas um nome estrelado a mais na lista de conquistas de Kennedy, ao lado de outras beldades da época como Kim Novak e Angie Dickinson.
À veterana Marlene Dietrich perguntou se também tinha se envolvido com o pai dele, outro caçador de estrelas. Ela respondeu que não. “Preciso de carne fresca todos os dias, senão fico com dor de cabeça”, era a espantosa explicação de Kennedy para os íntimos. Os seguranças se horrorizavam com os riscos que o fluxo constante de “conhecidas” criava, quando na verdade o perigo estava em um único e desconhecido homem.
Jacqueline podia enganar a si mesma em relação às traições do marido, mas tinha a mente perfeitamente clara sobre a imagem heroica que queria deixar dele depois do assassinato. Como a editora de livros que viria a ser, depois de passar de viúva sacralizada a interesseira descontrolada via casamento com o milionário grego Aristóteles Onassis, ela eliminou as passagens ruins e exaltou as boas de Kennedy.
Uma semana depois de segurar seu corpo nos braços, chamou um jornalista de confiança e falou durante quatro horas sobre a vida, a morte e a “magia” do marido. Foi aí que fez a comparação entre o governo dele e a corte do rei Artur, evocando um trecho do musical Camelot, o nome do castelo do personagem mítico. A palavra foi infinitamente replicada como sinônimo de uma era encantada.
Para o enterro, usou como referência o cerimonial de outro presidente
assassinado, Abraham Lincoln (Foto: AP)
Como acontece com outros grandes líderes políticos, Kennedy, descrito por um biógrafo como “um dos homens mais complicados e enigmáticos que já ocuparam a Casa Branca”, pode ser usado por diferentes correntes ideológicas. O programa para mandar o primeiro homem à Lua é evocado como exemplo da grandeza, da singularidade e da incomparável capacidade de realização dos americanos. Portanto, coisa de “direita”.
As políticas sociais são sempre consideradas “progressistas”. O histórico discurso que fez à nação em 11 de junho de 1963 de alguma maneira reflete isso. Em alguns estados do Sul, ainda havia muita resistência das autoridades ao fim da discriminação vigente entre brancos e negros em lugares públicos, em especial as escolas.
Kennedy fez um apelo à consciência, aos valores morais e até aos ensinamentos bíblicos para acabar com essa “indignidade arbitrária”, mas não tratou os que ainda defendiam a segregação como inimigos ou aberrações – mesmo porque era o Partido Democrata que governava os sulistas. “É um problema que todos nós enfrentamos, no Norte ou no Sul”, conciliou.
Secretamente, havia autorizado que o FBI grampeasse o líder negro Martin Luther King. O exercício do poder é complicado e a democracia não é perfeita. A última frase foi pronunciada por Kennedy em outro discurso célebre, o de Berlim, com um adendo: “Mas nunca tivemos de erguer um muro para não deixar nosso povo sair”.
Tornou-se um lugar-comum, mas dito por ele, daquela forma e naquele momento, teve uma grandiosidade que continua a atravessar as camadas de uma história infinitamente repetida.
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