Ministro Joaquim Barbosa-(Foto: Sergio Dutti)
Nos últimos seis meses, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, perdeu 9 quilos. Ele cortou as massas e aumentou a quantidade de verduras no prato – em mais uma tentativa de arrefecer as dores na coluna, problema de saúde que o persegue há anos.
Aos 56 anos de idade, o ministro também carrega sobre os ombros a pesada responsabilidade de relatar o processo do mensalão – o maior escândalo de corrupção pública da história brasileira, que tanto pode levar para a cadeia figurões da política, o que seria um fato inédito, como também pode ajudar a consolidar o descrédito na Justiça, confirmando a máxima de que poderosos e prisão percorrem caminhos paralelos.
Em entrevista a VEJA, Joaquim Barbosa, que deve assumir a presidência da Corte no fim do ano que vem, se diz formalmente impedido de comentar o caso do mensalão. Por outro lado, o ministro deixa clara a sua preocupação com as barreiras criadas pela própria legislação brasileira com o objetivo, segundo ele, de inviabilizar a punição de políticos corruptos.
O protagonismo do STF dos últimos tempos tem usurpado as funções do Congresso?
Temos uma Constituição muito boa, mas excessivamente detalhista, com um número imenso de dispositivos e, por isso, suscetível a fomentar interpretações e toda sorte de litígios. Também temos um sistema de jurisdição constitucional, talvez único no mundo, com um rol enorme de agentes e instituições dotadas da prerrogativa ou de competência para trazer questões ao Supremo.
É um leque considerável de interesses, de visões, que acaba causando a intervenção do STF nas mais diversas questões, nas mais diferentes áreas, inclusive dando margem a esse tipo de acusação. Nossas decisões não deveriam passar de 200, no máximo 300 por ano. Hoje, são analisados 50 mil, 60 mil processos. É uma insanidade.
Qual é a consequência direta dessa sobrecarga?
O pouco tempo de que dispomos para estudar e refletir sobre as questões verdadeiramente importantes, como anencefalia [em fetos ou recém-nascidos], ficha limpa, células-tronco, homoafetividade, regime de cotas raciais na educação.
Estes, sim, são casos apropriados para uma Corte como o Supremo Tribunal Federal. Hoje, consumimos boa parte do nosso tempo julgando ações que não precisariam chegar aqui.
O senhor pode dar um exemplo?
Julguei um caso de um homem que foi processado criminalmente porque deu um chute na canela da sogra. Ele foi condenado e ingressou com um habeas corpus que veio parar aqui. Parece brincadeira, mas isso é recorrente.
Há vários diagnósticos sobre o tema. Para o senhor, por que a Justiça no Brasil é tão lenta?
Os processos demoram muito porque as leis são muito intrincadas, malfeitas. As leis não foram pensadas para dar solução rápida aos litígios. É um problema cultural, de falta de sentido prático para resolver as coisas. Deveríamos nos espelhar um pouco na Justiça americana, na rapidez com que ela resolve a maioria dos casos.
Se um sistema judiciário não dá resposta rápida às demandas de natureza econômica, de natureza criminal, ele produz evidentemente uma descrença, um desânimo, que atingem a sociedade como um todo, [além do mais] inibindo investidores e empreendedores.
Essa percepção vem do exercício da magistratura?
O país atravessa um excelente momento econômico. Tenho amigos no exterior que dizem que há muita gente querendo investir no Brasil. Ao chegarem aqui, porém, essas pessoas deparam com um emaranhado de problemas de ordem legal, que vai da emissão do visto de permanência à criação de uma empresa. São muitos os obstáculos.
Esse emaranhado legal também está entre as causas da impunidade?
A Justiça solta porque, muitas vezes, a decisão de prender não está muito bem fundamentada. Os elementos que levaram à prisão não são consistentes. A polícia trabalha mal, o Ministério Público trabalha mal. Na maioria dos casos que resultam em impunidade, é isso que ocorre.
Por outro lado, o sistema penal brasileiro pune – e muito… principalmente os negros, os pobres, as minorias em geral. Às vezes, de maneira cruel, mediante defesa puramente formal ou absolutamente ineficiente.
O senhor concorda, então, com a ideia generalizada de que os poderosos não vão para a cadeia?
O foro privilegiado, como o nome já diz, reflete bem essa distinção cruel que não deveria existir. Uma vez eu chamei atenção para isso aqui no plenário do tribunal.
Você se lembra quando o presidente Bill Clinton foi inquirido pelo Grand Jury? O que é um Grand Jury nos Estados Unidos? Nada mais que um órgão de primeira instância, composto de pessoas do povo. Era o presidente dos Estados Unidos comparecendo perante esse júri, falando sob juramento, sem privilégio algum. O homem mais poderoso do planeta submetendo-se às mesmas leis que punem o cidadão comum. O foro privilegiado é a racionalização da impunidade.
Como assim?
A criação do foro privilegiado foi uma aposta que se fez na impossibilidade de os tribunais superiores levarem a bom termo um processo judicial complexo. Pense bem: um tribunal em que cada um dos seus componentes tem 10 mil casos para decidir, e cuja composição plenária julga questões que envolvem direitos e interesses diretos dos cidadãos, pode se dedicar às minúcias características de um processo criminal? Não é a vocação de uma corte constitucional.
Isso foi feito de maneira proposital.
Para garantir impunidade?
Evidente. O foro privilegiado foi uma esperteza que os políticos conceberam para se proteger. Um escudo para que as acusações formuladas contra eles jamais tenham consequências.
E, pelos exemplos recentes, parece que tem realmente funcionado.
Político na cadeia? Vai demorar muito ainda para que se veja um caso. Um processo criminal, por colocar em jogo a liberdade de uma pessoa em única e última instância, tem de ser um processo feito com a máxima atenção.
É difícil conciliar esse rol gigantesco de competências que o Supremo tem com a condução de um processo criminal. Coordenar a busca de provas, determinar medidas de restrição à liberdade, invasivas da intimidade, são coisas delicadíssimas.
Esse raciocínio que o senhor acaba de fazer se aplica ao caso do mensalão?
Não vou falar sobre isso. Esse é um processo que está em andamento, está sob os meus cuidados e, por isso, estou impedido de falar sobre ele.
O senhor é o primeiro ministro negro do STF. Qual é a sua opinião sobre as políticas afirmativas?
Em breve, o Supremo vai se posicionar sobre a questão das cotas raciais. Não posso me antecipar sobre um tema que ainda está sob análise. O que posso dizer é que existem experiências bem-sucedidas no mundo, mas isso não significa necessariamente que a receita possa ser copiada no Brasil. Não é um tema simples, mas é extremamente relevante.
O senhor concorda com a forma como são escolhidos os ministros das cortes superiores?
Não é o sistema ideal, mas não vislumbro outro melhor. Há os que criticam essa prerrogativa do presidente da República, mas acho que ele carrega consigo representatividade e legitimidade para isso. Qual seria a alternativa a esse sistema? A nomeação pelo Congresso?
Seguramente essa alternativa teria como consequência inevitável o rebaixamento do Supremo a um cabide de emprego para políticos sem voto, em fim de carreira, como ocorre com o Tribunal de Contas da União. Muita gente defende que se deva outorgar a escolha ao próprio Judiciário. Mas, com certeza, essa também não seria uma alternativa eficaz. Um corporativismo atroz se instalaria.
Talvez, como ideia, poderíamos pensar em estabelecer um prazo fixo para o mandato dos ministros dos tribunais superiores.
Quais seriam os méritos dessa ideia de encurtar a vida útil dos ministros?
É sempre uma aventura institucional mudar subitamente a forma de funcionamento de um órgão que já tem 120 anos de vida e que, bem ou mal, é a mais estável das nossas instituições. Mas penso que pode haver ganhos no estabelecimento de mandatos, com duração fixa, de doze anos, por exemplo, sem renovação. Mandatos curtos trariam insegurança e suscitariam a discussão sobre a possibilidade de renovação, o que não seria bom.
Da maneira como é feita hoje, a escolha dos ministros pelo presidente da República não leva a um comportamento submisso ao Executivo?
No Brasil de hoje não vejo nenhuma submissão do Judiciário ao Executivo. Nenhuma. O Judiciário brasileiro tem todas as garantias, todas as prerrogativas para ser um dos mais independentes do mundo.
Nem mesmo os Estados Unidos contam com as nossas prerrogativas. As garantias da Constituição mudaram radicalmente a face do Poder Judiciário, que saiu de uma situação de invisibilidade, antes de 1988, para essa enorme visibilidade atual.
O problema do Judiciário é de outra ordem, é organizacional, no plano da lei. Falta ousadia, falta coragem de propor mudanças que tornem a prestação jurisdicional mais rápida e pragmática.
A Justiça é tarda e falha no Brasil por quais razões?
É absurdo um sistema judiciário que conta com quatro graus de jurisdição! Deveriam ser apenas duas instâncias, como é no mundo inteiro. Essas instâncias favorecem o excesso de recursos.
Faz sentido em um país do tamanho do Brasil ter um sistema judicial em que tanto a Justiça Federal quanto a Justiça dos Estados tenham como órgãos de cúpula das suas decisões duas cortes situadas na capital federal, uma com onze ministros e outra com 33? Bastaria uma.
Em vez de termos duas cortes superiores para a Justiça comum, o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, poderíamos ter pequenas cortes, de no máximo sete juízes, em cada Estado. Uma estrutura mínima que pulverizaria o trabalho do Superior Tribunal de Justiça. Só viriam para o Supremo os processos que tratassem de questões verdadeiramente constitucionais.
Essa seria a maneira correta de o sistema funcionar.
Então o senhor é a favor da proposta que prevê a execução imediata das decisões judiciais após o pronunciamento dos tribunais de segunda instância?
O Brasil precisa urgentemente de um sistema judicial que dê respostas rápidas às demandas do cidadão por Justiça. Repito: não há como obter essas respostas rápidas com um sistema judicial com quatro graus de jurisdição. Isso é patético!
Eu desafio qualquer um a me apontar uma única democracia minimamente funcional em que sejam necessárias quatro instâncias, que permitem dezenas de recursos, para que as decisões dos juízes, por mais singelas que sejam, tenham efetividade.
O governo pretende flexibilizar a legislação para facilitar as compras e contratações para as obras da Copa do Mundo. Assunto que, provavelmente, vai acabar ocasionando um processo no STF. O que o senhor acha dessa saída?
Sou contra abrir exceções para a Fifa. A Fifa é uma organização privada, que não presta contas a ninguém. Eu adoro futebol, mas as exigências que estão sendo feitas pela Fifa para organizar o Mundial no Brasil me parecem exorbitantes. Esse é mais um caso que não precisaria chegar ao Supremo.
O STF confirmou (…), inclusive com o voto do senhor a favor, a legalidade da decisão do ex-presidente Lula de não extraditar o terrorista Cesare Battisti. O Brasil não corre o risco de virar refúgio de criminosos?
O que tenho a dizer sobre este caso está detalhado no meu voto. Não tenho nada a acrescentar.
(Publicada originalmente na edição de VEJA de 15 de junho de 2011)
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