Champinha tinha 16 anos em novembro de 2003, quando inaugurou a
carreira de bandido sem cura com o sequestro de um casal de namorados, vários
estupros, sucessivas sessões de tortura e um assassinato a sangue frio, tudo
isso em menos de uma semana.
Liana Friedenbach também tinha
16 anos quando foi sequestrada em companhia de Felipe Caffé, 19. Ele foi
abatido com um tiro na nuca por um dos integrantes da quadrilha liderada pelo
delinquente principiante. Ela ficou cinco dias em poder de Champinha, que a
estuprou e torturou incontáveis vezes – nos intervalos, obrigava a presa a
saciar o apetite sexual dos comparsas – antes de executá-la com 15 facadas.
Passados dez anos, Liana (da
mesma forma que Felipe) é apenas uma vida que poderia ter sido e não foi. O
destino e os códigos legais foram bem mais gentis com Champinha. “Matei porque
deu vontade”, informou ao ser capturado. Nem por isso lhe faltaria a mão
amiga de uma Justiça sempre camarada com feras precoces.
A legislação que trata de
crimes cometidos por menores de idade é tão misericordiosa com menores que
matam quanto inclemente com menores que morrem. Só é proibida a identificação
dos delinquentes. A vítima pode ser exposta sem quaisquer restrições, sem
tarjas cobrindo os olhos nas fotos, sem iniciais que escondem o nome completo
por trás de iniciais.
Até que o matador chegasse à maioridade, os relatos da imprensa
sobre o mergulho no inferno de Liana Friedenbach, ilustrados pela fisionomia
suave da menina assassinada, não puderam mostrar o brilho homicida do olhar de
Champinha, muito menos revelar o nome e o prenome camuflados por quatro letras:
RAAC. Trata-se de Roberto Aparecido Alves Cardoso, lembrou neste domingo
o programaFantástico,
da TV Globo, que exibiu imagens do meliante que, aos 26 anos, é um dos internos
do Unidade Experimental de Saúde (UES), criada pelo governo de São Paulo.
“Existe o menor infrator e existe uma minoria que é
irrecuperável”, pondera o advogado Ari Friedenbach, que hoje prossegue na
Câmara Municipal de São Paulo a luta para mudar a legislação absurdamente
branda com marginais prematuros. “Não seria exagero chamá-lo de besta, no
sentido demoníaco da palavra”, afirmou o pai de Liana na conversa com o site de
VEJA republicada na seção Entrevista.
Dele discordam dirigentes de entidades que tentam libertar Champinha desde que
completou o limite de três anos de internação na Fundação Casa, antiga Febem.
Esse atentado à sensatez poderá consumar-se ainda neste mês,
avisou a reportagem do Fantástico. Basta
que a Justiça considere procedente uma ação civil, protocolada em abril passado
por uma ramificação paulista do Ministério Público Federal, que pede a extinção
da UES, que mantêm distantes da sociedade alguns maiores de 18 anos que
cometeram crimes considerados graves e já superaram o tempo máximo de
permanência na Casa, mas continuam com o direito de ir e vir interditado por
laudos médicos desfavoráveis. Roberto Aparecido Alves Cardoso é um deles.
“Os jovens deveriam ser
tratados em instituições de saúde adequadas, segundo os preceitos que norteiam
o tratamento de suas moléstias e não em uma instituição que se encontra num
‘limbo jurídico’”, alega a ação subscrita pela Procuradoria Regional dos
Direitos do Cidadão de São Paulo, pelo Conectas Direitos Humanos, pela
Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, pelo
Instituto de Defesa dos Direitos de Defesa e pelo Conselho Regional de
Psicologia da 6ª Região.
Vários exames feitos nos últimos anos concluíram que Champinha continua tão cruel e perigoso quanto se mostrou naquele novembro de 2003.
Pedro Antônio de Oliveira
Machado, procurador regional dos Direitos do Cidadão, qualifica de
“medieval” o tratamento dispensado aos jovens bandidos. Segundo o procurador, a
UES não pode ser considerada penitenciária, nem colônia agrícola, industrial ou
similar, nem cadeia pública, hospital de custódia e tratamento ou qualquer
outra modalidade de estabelecimento penal. “Os jovens ali internados não estão
cumprindo pena decorrente de processo crime”, afirma num trecho da ação.
“O local também não pode ser
considerado um hospital, porque não possui projeto terapêutico para tratamento
dos jovens internos e os prontuários médicos não são acessíveis aos jovens e
seus familiares”, prossegue o arrazoado. Embora admita que os reclusos da
UES ─ “em caso de necessidade” ─ sejam transferidos para “estabelecimentos
inscritos no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, como Centros de
Atenção Psicossocial III (leitos em internação) e hospitais gerais”, o
procurador prefere devolver às ruas Champinha e seus colegas.
“Após o término do período
improrrogável de três anos de internação na Fundação Casa, ou ao completar 21
anos, com o esgotamento da competência da Justiça da Infância, deveriam ser
postos em liberdade”, argumenta. “Além de estarem sendo responsabilizados duas
vezes pela prática do mesmo ato, a internação compulsória na UES se dá por
tempo indeterminado, como se perpétua fosse”. Vários exames feitos nos últimos
anos concluíram que Champinha continua tão cruel e perigoso quanto se mostrou
naquele novembro de 2003. Mas nada disso parece impressionar o primeiro a
assinar a ação.
Caso seja libertado, Roberto
Aparecido Alves Cardoso poderia prestar serviços a Oliveira Machado como
motorista particular. A coluna se dispõe a bancar-lhe o salário. E topa pagar o
dobro se o patrão entregar a Champinha a missão de transportar, entre a casa e
a escola, as crianças da família.
*Augusto Nunes
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