Depoimento de José Serra
Folha de S.Paulo
Luciano Andrade/Folhapress
Serra conversa com Fernando Henrique Cardoso (esq.) e Geraldo
Alckmin na Constituinte.
Nos 25 anos da Constituição que Ulysses Guimarães classificou de "cidadã", alinho-me
com aqueles que avaliam que uma das virtudes da Carta é sua vocação garantidora de
direitos.
Foi, nesse caso, o bom uso que se fez de circunstâncias que não eram da nossa escolha.
Explico-me: finda a ditadura militar, a nova Lei Maior procurou expressar o seu repúdio
ao autoritarismo, precavendo-se de tentações golpistas e da agressão a direitos individuais.
Mas também é preciso dizer que fizemos uma Carta excessivamente marcada por
contingências, com o olhar, muitas vezes, posto no retrovisor. Seus defeitos, curiosamente,
não foram obra nem da esquerda nem da direita, mas do atraso. No Brasil, infelizmente,
os direitistas costumam deixar de lado o conservadorismo virtuoso, e os esquerdistas,
o igualitarismo generoso.
Poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da
Constituição
de 1988 é a consagração das liberdades democráticas --de opinião, manifestação e
organização-- e das garantias individuais: a criminalização inequívoca do racismo,
a abolição do banimento e
da pena de morte, o livre exercício dos cultos religiosos, o repúdio à tortura e a
tratamentos desumanos ou degradantes dos cidadãos etc. Isso tudo ficou condensado no
artigo 5º, o mais extenso da Carta, com quatro parágrafos e 78 incisos.
À parte o capítulo das liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos,
como os maiores avanços da Carta de 1988 a concepção do SUS; a criação de
um fundo (posteriormente chamado FAT) que reuniu as contribuições do PIS/Pasep para
tornar viável o seguro-desemprego e, ao mesmo tempo, financiar investimentos; o dispositivo
que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação
continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo
e ao Legislativo --os Tribunais de Contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos
nas suas atribuições; novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério
Público e a instituição do segundo turno na eleição para presidente, governadores e prefeitos
em cidades com mais de 200 mil eleitores.
Mas há também alguns defeitos severos, que apontei e combati quando deputado
constituinte --muitas das críticas foram expressas em artigos semanais nesta Folha: a prolixidade;
as concessões de natureza corporativa; a prodigalidade fiscal; a falta de um regime geral
de previdência mais homogêneo e adequado ao longo prazo; o atrelamento dos sindicatos
ao Estado e a falta de inovação em matéria de sistema político e eleitoral. Deixo de mencionar
aqui algumas aberrações aprovadas a respeito da ordem econômico-financeira, removidas
nos 15 anos seguintes por intermédio de emendas constitucionais. Tomei a iniciativa, como
senador, de escoimar da carta os absurdos na área financeira. Contei com o apoio, faça-se
justiça aos fatos, do então líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra.
A prolixidade não precisa ser provada; é autoevidente: 250 artigos e 70 disposições
transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos deles típicos de leis ordinárias,
decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares.
Um exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a
garantia de "proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional",
o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete...
Ao contrário do que se pensa, os interesses corporativos principais cravados na
Constituição não foram os do setor privado, mas os da área da administração pública,
de que é exemplo escancarado a estabilidade para os servidores não concursados
de órgãos públicos que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de
promulgação da Carta. Abriu-se caminho ainda para toda sorte de isonomias salariais,
permanente e poderoso mecanismo gerador de despesas.
Esse aspecto corporativista da Constituição representou um fator decisivo na
chamada prodigalidade fiscal. Outro foi a forte redistribuição federativa de receitas
tributárias, sem que houvesse, paralelamente, nenhuma descentralização de encargos
--feroz e eficazmente combatida pelas corporações de funcionários e de clientes
dos setores envolvidos.
Se a força e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais deveu-se à ruptura com
um regime de força --tratava-se de esconjurar o passado--, os defeitos da Carta de
1988 estão relacionados a contingências políticas e às falsas expectativas que gerou.
Afinal, a Assembleia Nacional Constituinte tinha sido uma bandeira da oposição ao
regime militar desde a segunda metade da década de 1970. Não era vista apenas como
o umbral da liberdade, mas também da prosperidade e da justiça social.
Havia uma expectativa de elevação imediata do bem-estar social, o que havia sido
proporcionado, note-se, pelo Plano Cruzado, na sua fase bem-sucedida em 1986,
proporcionando muitos votos ao PMDB nas eleições desse ano. Ocorre que a
agonia do plano coincidiu com o início dos trabalhos da Constituinte, no começo
de 1987. A inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e
instabilidade social, fez sombra na Assembleia até o fim. Parlamentares e partidos
se moviam freneticamente para mostrar serviço aos eleitores e para responder a
demandas da opinião pública, procurando mitigar insatisfações com a criação
de preceitos constitucionais. Ou por outra: uma Carta Constitucional, que é feita,
por definição, para durar e para estar acima de contingências, transformava-se em
fator de ajuste de tensões sociais e conflitos distributivos corriqueiros.
O colapso da estabilidade econômica enfraqueceu rapidamente o governo Sarney e
ampliou a distância entre o mandatário e o PMDB, partido ao qual se filiara exclusivamente
para assumir a condição de vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves. O setor mais
influente do partido deu início aos trabalhos para redigir a nova Carta procurando
diferenciar-se do governo. Ganhou força a ideia de uma Assembleia que editasse
atos constitucionais que se sobrepusessem ao Executivo. Isso acabou não acontecendo,
mas inaugurou um tipo de conflito que se manteria até o final do processo constituinte.
O confronto mais relevante teve como objeto a duração do mandato de Sarney, que tinha
sido eleito com Tancredo para governar por seis anos, mas aceitava cinco. O então
líder da bancada do PMDB, Mário Covas, defendia quatro e emplacou esse número numa
primeira versão da Constituição, vinda da Comissão de Sistematização, em meados de 1987,
junto com a aprovação do parlamentarismo. O presidente Sarney propôs um acordo:
apoiaria o parlamentarismo se lhe dessem cinco anos e o direito de indicar um
primeiro-ministro com estabilidade inicial de dez meses, se a memória não me falha.
O PMDB recusou a oferta. O governo não mediu esforços para garantir os cinco anos,
recorreu a todas as armas da fisiologia, para dizer o mínimo, e saiu vitorioso. O trágico
é que o parlamentarismo acabou sendo tragado pela voragem.
A impopularidade e a insegurança do governo, determinadas pela inflação galopante
e pelos conflitos com a Assembleia, retiraram do governo a capacidade de assumir
um papel relevante na formação do texto constitucional. Na verdade, o Planalto s
e omitiu, especialmente em relação aos gastos --chegou a apoiar medidas nesse sentido.
O chamado Centrão, um agrupamento de parlamentares mais ligados ao governo,
só tinha compromisso com os cinco anos e o presidencialismo. No mais, dispôs de plena
autonomia para defender suas propostas.
É preciso destacar ainda as condições difíceis em que atuou o PMDB, o maior
partido do Congresso. Era já uma força extremamente heterogênea, cindida por
interesses regionais. Chegou à Constituinte sem uma concepção sobre a Carta ou a
forma de organizar o trabalho. Além disso, ficou politicamente dividido entre suas
duas figuras principais, ambos aspirantes à Presidência nas eleições seguintes: Ulysses
Guimarães e Mário Covas. O primeiro era o presidente da Assembleia; o segundo,
líder do partido, eleito contra o candidato de Ulysses.
Alguns analistas se confundem ao procurar entender o texto constitucional a partir da
dinâmica de conflitos entre "esquerda" e "direita". A chamada direita, no Brasil, não
se expressa pelo conservadorismo, mas pelo atraso. Nem remotamente é austera.
O texto substitutivo do Centrão era mais gastador e prolixo, mais recheado de
casuísmos, privilégios corporativos, vinculações e isonomias do que o já pródigo projeto
que fora por ele derrubado, da Comissão de Sistematização, este sim comandado pela
fatia do PMDB que se afastara do governo. Mesmo o Centrão, note-se, manteve no
seu projeto todas as garantias democráticas do relatório que conseguiu derrubar. Estas
não foram objeto de nenhum confronto significativo no desenrolar de todo o processo.
E, só por curiosidade, foi do Centrão, do deputado Gastone Righi, a criação do abono
de férias para todos os assalariados...
O que se poderia chamar "esquerda", à época, era dominada pela concepção do Estado
varguista e pelas ideias das décadas de 50 e 60, alienadas das mudanças que já
estavam acontecendo no mundo e que só começariam a tornar-se mais transparentes
no Brasil depois da queda do Muro de Berlim. Para ela, eram exóticas as preocupações
com inflação, quadro fiscal, travas ao investimento privado e paternalismo estatal, sem
mencionar a confusão permanente e até contradição entre benefícios para corporações
restritas e os interesses sociais mais amplos.
Os dois lados exibiram seu antagonismo --o que politicamente convinha a ambos--
com farta cobertura da imprensa. O tema foi a reforma agrária, e o confronto se deu
em torno da função social da propriedade e da possibilidade de desapropriar
propriedades produtivas. Tudo acabou resolvido em dois artigos. Noves fora as
diferentes formas de lidar com o MST e com a inconstitucional violência rural,
nenhum governo posterior procurou mexer no texto desses artigos nem deixou de
levar adiante o caríssimo processo da reforma agrária.
Não por acaso, os dois lados, com a cumplicidade de sucessivos governos, foram
e continuam sendo integrantes ativos do mais consolidado de todos os partidos brasileiros:
a Fuce --Frente Única Contra o Erário e a favor das corporações de interesses especiais.
Ninguém e mais falsamente de esquerda do que ela. Ninguém é mais falsamente de direita
do que ela. Ninguém, como ela, é tão objetivamente contra os interesses do Brasil e dos
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