Uma das constantes mais nítidas e
inegáveis da história do movimento revolucionário é que suas facções, quando
entram em conflito, o primeiro recurso a que apelam é acusar-se
mutuamente de aliadas e instrumentos do capitalismo, da maldita burguesia.
Comentários enviados às páginas jornalísticas da internet são
às vezes um bom indício da opinião dominante em certos meios, principalmente se
entendemos que os leitores habituais de um jornal, ou da sua versão eletrônica,
têm quase sempre a cabeça feita pelo mesmo jornal.
A Folha de S. Paulo, que é de algum modo o house organ da
USP, condensa maravilhosamente, por isso mesmo, o conjunto de chavões, lendas e
mitos da esquerda chique, que, para as classes alta e média da capital
paulista, constituem o fundamento inabalável da sua visão do mundo.
Eis aqui dois exemplos casuais, mas
altamente significativos, enviados ao jornal por ocasião do artigo em que João
Pereira Coutinho celebrava o livro de Silvia Bittencourt, A Cozinha
Venenosa, ao que parece uma pesquisa interessantíssima sobre um jornal
menor da Baviera que alertou, pioneiramente e em vão, contra o perigo da
ascensão do Partido Nazista:
1) Hitler foi um joguete útil que a direita européia pensou poder controlar e
usar à vontade contra o bolchevismo russo e a esquerda alemã. Saiu de
controle e deu no que deu. Agora, renegar isso é miopia ou má fé.
2) Na verdade, a direita em geral, por medo do comunismo, apostou em
Hitler, desprezando a socialdemocracia que, na ocasião, era a única saída
possível para conter os dois extremos.
Uma inversão tão exata e meticulosa da realidade histórica não se impregna na
mente de uma coletividade sem uma campanha de falsificação pertinaz e
onipresente, renovada ao longo de muitas gerações. O que se entende e se
repassa no Brasil como história do nazismo , tanto nas escolas quanto na mídia,
é ainda uma repetição fiel, mecânica e servil da propaganda estalinista posta
em circulação nos anos 30 do século XX e até hoje aceita, sem exame, pelo beautiful
people paulistano, a contrapelo da ciência histórica mundial que já
deu cabo dessa patacoada há muitas décadas.
Na verdade, a direita européia praticamente inteira representada, por exemplo,
por Churchill em Londres, pela Action Française em Paris, pelo
chanceler Engelbert Dolfuss em Viena e pelo Papa Pio XII em Roma opôs desde o
início a mais vigorosa resistência à ascensão nazista e continuou a fazer isso
depois de 1939, quando Stálin e Hitler, após uma longa colaboração secreta, se
deram as mãos em público para invadir a Polônia.
Nem o Partido Nazista nem o fascismo italiano surgiram como facções
conservadoras ou de direita, mas como dissidências internas do movimento
revolucionário. A tônica de ambos era restaurar o caráter originariamente
nacionalista dos vários socialismos, que, no entender deles, o Partido
Comunista havia enlatado à força num internacionalismo enganoso, subsidiado
pelo grande capital. Como nenhuma mentira pega sem um fundo de verdade, a visão
nazifascista da história correspondia, nesses pontos, à realidade dos fatos:
(1) Os socialismos apareceram realmente associados aos movimentos de
independência nacional que sacudiram a Europa desde o início do século XIX
(leiam Benedetto Croce, Storia d Europa nel Secolo Decimonono,
reed. Adelphi, 1993).
(2) O internacionalismo proletário foi realmente uma invenção do Partido
Comunista, nascida de uma resolução proposta por Lênin e Rosa Luxemburgo na
Segunda Internacional, em 1907, que declarou todo patriotismo ou nacionalismo o
inimigo número um da revolução (sem prejuízo de que, mais tarde, Stálin
invertesse o discurso, passando a usar os ressentimentos nacionais
anticolonialistas como motores do espírito revolucionário).
(3) O grande capital, especialmente americano, subsidiou o movimento comunista
com uma generosidade ilimitada, incomparavelmente superior a qualquer ajuda que
possa ter prestado a nazistas e fascistas, antes ou depois (v. Antony C.
Sutton, The Best Enemy Money Can Buy, Liberty House Press,
1986; Wall Street and the Bolshevik Revolution, reed. Clairview
Books, 2011; e sobretudo os três volumes da série Western Technology
& Soviet Economic Development publicados pela Hoover Institution).
Uma das constantes mais nítidas e inegáveis da história do movimento
revolucionário é que suas facções, quando entram em conflito, o primeiro
recurso a que apelam é acusar-se mutuamente de aliadas e instrumentos do
capitalismo, da maldita burguesia. Os comunistas usaram esse rótulo
abundantemente contra os anarquistas, os trotskistas, os socialdemocratas e,
como não poderia deixar de ser, contra os nazistas e fascistas. Só que estes já
o haviam usado contra os comunistas muito antes e, sabe-se hoje, até com mais
razão. Depois, como o nazifascismo perdeu, foi a propaganda comunista que
acabou prevalecendo na memória popular.
O segundo comentário é até mais louco do que o primeiro: a direita negou apoio
à socialdemocracia e, assim, entregou o poder a Hitler. Não, porca
miséria. Toda a historiografia mundial sabe que foi o contrário, mas a
notícia ainda não se espalhou entre os cultíssimos leitores da Folha.
Quem boicotou os socialdemocratas não foi a direita; foi o Partido Comunista,
por ordem de Stálin, que via neles a direita quintessencial, o inimigo burguês
por excelência, e nos nazistas o navio quebra-gelo (sic) apropriado para
desmantelar as democracias em torno e, mesmo a contragosto, abrir caminho ao
avanço das tropas comunistas, como de fato acabou acontecendo em todo o Leste
Europeu.
A credibilidade infinitamente renovada que as lendas historiográficas do
estalinismo continuam desfrutando no Brasil depois de oito décadas é um dos
fenômenos mais lindos nos anais da estupidez universal.
* ESCRITO POR OLAVO DE
CARVALHO - Publicado no Diário do Comércio.
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