Foto:Marcos Brindicci/Reuters |
O bolero, ritmo popular na América Latina, pode ser levado
solitariamente, por um único bailarino. O mais comum, no entanto, é que casais
enamorados serpenteiem pelo salão, olhos nos olhos, dois passos para lá e dois
para cá. Dá-se o mesmo no bolero da inflação. Para que bailar sozinho? A
Venezuela de Hugo Chávez, até recentemente, dançava um solo. Em um continente
obcecado em apagar da memória o descontrole nos preços da década de 80, o país
vinha rodopiando solitário sob o compasso de reajustes superiores a 10% ao ano.
Agora a Venezuela encontrou um acompanhante: a Argentina. Há duas semanas, o
presidente Néstor Kirchner afastou a diretora do Indec – o IBGE argentino –,
responsável pelos cálculos da inflação, porque ela se negou a contabilizar por
baixo o reajuste nos planos de saúde, que teria grande peso no cômputo geral da
inflação. Pela metodologia correta do Indec, o índice argentino seria de 2,1% –
o que projetaria uma inflação anual superior a 20%. Por interferência pessoal
de Kirchner, a taxa caiu para 1,1%.
Na semana passada, Chávez deu um novo passo
nesse bolero melancólico. Anunciou, durante o seu programa televisivo Alô Presidente, detalhes de um plano desatinado
para conter a alta de preços. O projeto prevê o confisco de mercadorias para
coibir a especulação e determina o corte de três zeros do bolívar, a moeda
local. Previstas para ser implementadas no ano que vem, as medidas criarão o
(suposto) "bolívar forte". Na verdade, trata-se de cópia descarada do
fracassado Plano Cruzado brasileiro, de 1986. A Venezuela já vinha tentando
controlar os preços fazia algum tempo. Mas, assim como no tabelamento do
Cruzado, o resultado tem sido desastroso: gôndolas vazias nos supermercados.
"Esses países estão se valendo de todas as estratégias que o Brasil
utilizou sem sucesso no passado", afirma a economista Eliana Cardoso,
referindo-se a confiscos, congelamento e manipulação de índices.
Segundo especialistas, não surpreende que os
campeões de inflação sejam governos com tendências populistas ou de viés
totalitário. Na luta para permanecer no poder, eles tendem a estimular o
crescimento com ações perdulárias. O resultado não poderia ser outro senão a
alta de preços. "Não podemos esquecer o que o economista americano Milton
Friedman nos ensinou: a inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno
monetário. Se a maquininha do governo estiver imprimindo dinheiro, não há
saída, haverá inflação", diz Eliana Cardoso. Quando os preços sobem, esses
governos tentam manipular o índice, às vezes atropelando órgãos estatísticos
tradicionais, como no caso argentino. Se isso não for possível, colocam a culpa
nos "especuladores", como chamam os empresários. Leis draconianas são
aprovadas para confiscar ou estatizar propriedades desses "inimigos do
povo". Não causa surpresa que, fora da América Latina, países como o Irã
de Mahmoud Ahmadinejad, fundamentalista islâmico com viés populista, enfrentem
o mesmo problema. O Irã tenta sufocar na marra o fantasma da inflação. Pelos
índices oficiais, a inflação no país gira em torno de 15% ao ano. Mas a taxa
real seria pelo menos o dobro disso.
Na avaliação de George Avelino, cientista
político da FGV, quanto maiores as manipulações dos índices de inflação e de
outros indicadores, menos efetiva é a democracia. "E menores as chances de
o Estado intervir na economia de forma a promover o bem-estar geral no longo
prazo", afirma ele. Ou seja, embora os dois países estejam crescendo a taxas
de fazer inveja aos desenvolvimentistas brasileiros, trata-se de uma bolha que
não pode ser confundida com desenvolvimento sustentável. Vale lembrar ainda
que, a despeito de a economia argentina ter crescido acima de 8% nos últimos
três anos, seu tamanho, medido em dólares, é ainda inferior ao do período
pré-crise (veja gráfico
abaixo).
Enquanto Argentina e Venezuela optam pelos
mesmos vícios econômicos da década de 80, a economia mundial vive uma fase
dourada de crescimento – ainda que às vezes insatisfatório, como no caso
brasileiro – com baixa inflação. O motivo desse cenário é que, com a
globalização, a concorrência tornou-se bem mais acirrada, forçando a queda de
preços. Além disso, os países aprenderam, a duras penas, que não se brinca com
o reajuste de preços. Se os bancos centrais baixam sua guarda, a inflação volta
com força, como uma bola de neve que se transforma em avalanche. Isso porque as
pessoas e as empresas tendem a indexar salários e preços. Se a inflação fosse
inofensiva, como pregam alguns economistas brasileiros, Chávez e Kirchner não
se esforçariam para manipular índices, tabelar preços e aprovar leis de
confisco para assegurar o abastecimento. Nessa milonga populista destinada ao
fracasso, quem dançará será a população de Venezuela e Argentina.
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