sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Digressões em torno da aliança do Atlântico Norte à luz da crise na Síria.


Alguns amigos internautas têm me questionado sobre o que eu possivelmente possa ter achado do fato de o presidente Barak Obama, dos EUA, ter fracassado em avançar decisivamente e militarmente contra a Síria, mesmo e apesar de o presidente da Rússia, Vladimir Putin, não concordar com isso. Respondo que não houve um fracasso, propriamente dito, mas uma atitude de prudência por parte da Casa Branca, suscitada muito mais pela decisão da dinastia Assad em submeter o seu arsenal químico ao controle internacional da ONU, do que por qualquer discurso que Putin tenha feito sobre a intervenção da OTAN na Síria. Justiça seja feita, diga-se de passagem, ao fato de que o mandatário russo em momento algum se entregou à veleidade de fazer ameaças aos EUA e seus aliados, agindo também com a necessária prudência que a sua posição exige.
            Todavia, mais importante do que uma intervenção militar contra o regime da Bashar al Assad, que, é claro, teria muitos aspectos geopolíticos que ainda não foram devidamente considerados, situa-se o estado em que se encontram as relações entre EUA e os países europeus e, dentro da União europeia, o estado das relações entre os seus países membros e destes com o resto da Europa e Ásia.
            Tenho escrito pouco sobre os russos, mas em vista da sua atuação no caso da Síria, que é um país econômica e militarmente fraco – sinto-me no dever de escrever algo sobre o governo de Putin, pelo menos sobre o que Moscou pode estimular Damasco a fazer e dar a Assad os meios para isso. Ora, a Europa, como um todo, ainda é uma economia um pouco maior do que a dos EUA e, em conjunto, seria um concorrente de peso para os americanos. Mas seu poderio militar é fraco, ao contrário da Rússia, cuja economia é fraca, mas ainda conserva boa parte do poderio militar herdado da falecida União Soviética.
            As relações americano-europeias ajudaram a moldar o século 20, com o capitalismo evoluindo muito em função da doutrina socialista fundamentada pelos filósofos europeus desde o final do século XVIII, até o evento da Segunda Guerra Mundial, provocada exatamente pela exacerbação de uma das formas de socialismo, o nacional socialismo do Partido dos Trabalhadores da Alemanha.
As ações, americana e russa, foram decisivas para destruir o Terceiro Reich e vencer a 2ª Guerra Mundial, mas foi graças ao Plano Marshall, dos EUA, que a Europa se ergueu dos escombros e voltou a ser a potência que é hoje, pelo menos quando a economia dos seus países é considerada em conjunto, justificando assim o bloco econômico que é – e deve continuar a ser apenas isso – a União Europeia. Isso também se repetiu no Japão, fazendo surgir uma primeira potência asiática do pós-guerra. A depender da Rússia (leia-se União Soviética) a Europa estaria ainda relegada a um continente pobre, destroçado e subdesenvolvido.
            É claro que as viúvas do Muro de Berlim não concordam com isso, mais por terem sua visão histórica turvada pela ideologia marxista, do que pelo cenário que a história do século XX mostra com extrema nitidez. A própria Guerra Fria foi extremamente útil a partir da “crise dos mísseis soviéticos em Cuba” e acabou se tornando numa ferramenta que difundiu a empresa privada e à economia de mercado privatista que gerou tamanha riqueza, que os soviéticos não só se viram forçados a retirar suas forças da Europa Ocidental, como, também suscitou entre eles questões existenciais do tipo: “ora, de que adianta termos tanto poder militar se continuamos a viver um nível de vida pior do que qualquer país do terceiro mundo”?
            E foram perguntas como essa que fizeram os russos achar que algo de muito errado estava se passando com eles e, com uma ajudinha do Papa João XXIII e do simpático Ronald Reagan, começaram a exigir transparência (glasnost) e reestruturação (perestroika) por parte dos seus dirigentes, o que eventualmente determinou o fim da União Soviética, da mesma forma como, no Brasil, as mesmas exigências certamente determinarão o desaparecimento do “sucialismo” do Partido dos Trabalhadores e base ‘alugada’.
            Mas, a questão agora é outra: qual será atualmente a relação entre EUA e União Europeia, duas entidades econômicas enormes que, juntas, respondem por cerca de 50 por cento do PIB de todo o mundo, nesta segunda década do século XXI? Esta pergunta paira sobre todos os demais países do mundo, principalmente sobre a Rússia, cuja transição do socialismo soviético para o capitalismo privado – embora o Estado russo ainda seja um forte agente capitalista – foi turbulenta com grupos mafiosos ávidos por substituírem a reduzida burguesia do politiburo soviético.
            Os acontecimentos que levaram americanos e europeus a cogitarem uma intervenção militar na Síria, que até agora não se materializou, servem para responder a essa pergunta. Ora, a crise síria não começou com os Estados Unidos, e a alegação de que uma ação militar “punitiva” contra Assad deveria ser feita pelo ato alegadamente criminoso de genocídio por uso de armas químicas, deveria sim ser feita a partir dos apelos para tal do Reino Unido, da França e da Turquia.
            Com relutância, os EUA acabaram concordando com seus aliados europeus, mesmo que tal intervenção militar fosse contra os interesses americanos e israelenses e representassem o perigo de ver a Irmandade Muçulmana, jihadista e antiocidental, tomar o poder em Damasco.
            Na Turquia, o apelo para a intervenção da OTAN foi muito maior do que queriam os americanos. A má vontade dos EUA de atender os seus aliados num ataque militar ao regime de Assad era evidente e anterior a qualquer declaração de Putin, que, na verdade, aproveitou-se desse cenário surreal para fazer proselitismo político e sair como o “bom-mocinho” dessa estória toda.
            Os franceses, que se viram instados pelos americanos e ingleses a não ficar apenas olhando, mas a participar ativamente do que diziam querer, acabaram inibidos por um Parlamento que achou por bem abortar a sua participação, inicialmente condenada por Obama.
            O mais significativo de tudo isso foi perceber como os europeus estavam divididos quanto a uma intervenção armada na Síria. E Putin, político perspicaz e profundo conhecedor dos compradores do gás natural de seu país, logo se apercebeu disso. Praticamente, cada país da “União” Europeia, trabalhava com soluções as mais díspares, mas sempre contando com a força militar da OTAN.
            A Alemanha teve uma posição interessante, dizendo no início que não estava disposta a endossar a ação, para no fim aceitar a participação, provavelmente só para não ficar de fora da ‘festa’. Tudo isso explica porque a União Europeia, apesar de beneficiar seu núcleo franco-germânico, nunca foi capaz de sequer chegar perto de reunir as condições de criar um país parecido com uns “Estados Unidos da Europa”.
            França e a Alemanha têm divergências profundas, não apenas históricas ou só sobre a Síria, mas em relação a própria capacidade de interagirem numa eventual fusão política nacional. Historicamente, as divergências entre Franca e Alemanha sempre estiveram nas raízes da maioria das guerras europeias e, um dos motores centrais da atual União Europeia tem sido a necessidade de união entre ambos os países, o que explica por que esse motor sempre rateou e o bloco nunca passou daquilo que realmente deve ser, ou seja, uma cooperação econômica.
            Mesmo assim, os demais países europeus, intoxicados pelo socialismo anterior à formação do bloco, são verdadeiros incômodos e problemas a serem solucionado por ambos os países para chegarem a uma EU forte e eficaz. Após a recuperação europeia pelo plano Marshall americano, as divergências entre ambos retornaram com força. Desta vez, porém, sem a virulência que motivou duas guerras mundiais, mas ainda assim inviabilizando qualquer sincronização e factibilidade conjunta de suas políticas externas.
            Daqui do meu canto cibernético, no Brasil, acredito poder ver com mais nitidez do que um observador lá do local, lendo as mais variadas análises e acompanhando o desenrolar dos fatos como um espectador privilegiado para chegar a conclusão de que as três principais potências europeias, o Reino Unido, a França e a Alemanha, estão executando políticas externas muito diferentes.
            Os ingleses têm seus objetivos próprios e, apesar de regularem seus preços tomando o padrão ‘euro’, fazem questão de manter em seu país a libra esterlina como padrão monetário circulante e não parecem dispostos a arcar com a sobrecarga econômica de tentar salvar as arruinadas economias periféricas europeias detonadas por décadas de socialismo crônico.
            Os franceses estão voltados para o Mediterrâneo e a África, ao passo que os alemães tentam preservar a zona de comércio do euro, mesmo a custo de sérias sangrias de sua potente economia e agora se voltam para o leste europeu, principalmente para a Rússia, da qual dependem energeticamente.
            Tudo isso me faz pensar que, na verdade, nada mudou na Europa e que o conceito de uma “nação europeia” segue mais fluido do que nunca, pois, apesar de ser uma zona de livre comércio, a EU exclui alguns países europeus; apesar de ter uma união monetária, alguns membros são excluídos por manterem suas moedas próprias; apesar de ter um Parlamento – supremo absurdo – deixa a defesa e as prerrogativas da política externa a cargo de Estados (nações) soberanos.
            A UE não conseguiu resolver alguns aspectos fundamentais, desde 1945, e montar algo mais organizado. Pelo contrário, onde antes havia apenas divisões geográficas e de interesses econômicos, parece agora haver também divisões conceituais.
            Com a crise na Síria, as diferenças entre os EUA e a Europa saíram do armário e ficaram evidentes, com exceção para as pessoas que vivem em países onde a ‘mainstream’ mídia só informa aquilo que interessa aos seus governos, como é o caso de Pindorama, infelizmente. Todavia para quem tem a capacidade mínima de entender outras linguagens, fatos como esses não permanecem despercebidos.
            Apesar do pouco interesse, a matança química nos subúrbios de Damasco praticamente forçou Obama a moralmente sentir-se obrigado a intervir, o que só não fez porque o Capitólio é muito mais utilitarista do que um presidente moderadamente populista (e que não poderá mais ser reeleito – é bom que se diga).
            A Europa, sem as forças americanas da OTAN não pode agir porque, na verdade, não tem uma política externa única ou uma política de defesa comum. Só pode reagir premida por necessidade absoluta, o que não é o caso. Nenhum país europeu isoladamente tem a capacidade de por si próprio realizar um ataque aéreo ou de manter uma área de exclusão aérea sobre a Síria, como ficou evidenciado na Líbia. Eles precisam dos Estados Unidos para tanto.
            Os europeus hoje metem o pau em Obama pela sua atitude cautelar com Damasco e ao mesmo tempo afirmam que a política externa de Putin é um fracasso, mas temem que o fornecimento de gás russo seja interrompido e, afinal, o inverno está quase batendo às portas europeias. Quanto aos americanos, os europeus tendem a considerá-los em dois polos de comportamento: ou são ‘ingênuos’ ou são ‘caubóis’. Assim consideraram Jimmy Carter, por exemplo, como ingênuo e Lyndon Johnson e George Bush como caubóis. Só consideram como verdadeiros estadistas Ronald Reagan e – pasmem –, Richard Nixon...
            A maioria dos europeus é mais atenta aos presidentes americanos do que o contrário e a opinião dessa maioria é quase sempre negativa com relação a quem está na Casa Branca e isso tem gerado suscetibilidades às vezes difíceis de serem superadas. A sorte da Europa é justamente a de ter seus líderes com seus dedos afastados dos botões de lançamento de mísseis termonucleares ou já pensaram como suas mãos nervosas poderiam reagir se agirem como em 1914 e 1939?...
            Ainda bem que estas armas são controladas por caubóis e ingênuos americanos, além de russos "conspiradores" – como é a visão europeia da maioria dos líderes russos. Com tantas e profundas diferenças e desconfianças rolando no horizonte, americanos e russos, soviéticos ou não, têm conseguido evitar o pior, de um modo ou de outro e, provavelmente graças a Deus.
            Por outro lado, pela sua reputação, os líderes europeus poderiam ter mergulhado o mundo em mais um desastre desta vez sem precedentes e por motivo fútil. Os europeus se orgulham de sua diplomacia, mas nunca compreendi direito o porquê desse orgulho. Vimos isso nas tratativas de ação militar na Síria, quando os europeus queiram porque queriam um ataque punitivo e cirúrgico a Damasco. E quando Obama, sabendo que o Congresso não lhe daria o aval, resolveu adotar uma atitude de cautela, previamente combinada como Putin, os warmongers europeus começaram a dizer que Obama tinha sido “dobrado” pelo líder russo.
            Se, o entanto, ele tivesse atacado a Síria, acabaria automaticamente classificado como mais um caubói, não importa o resultado que isso viesse a ter.
            Os ingleses foram os mais indiferentes quanto à decisão da Casa Branca e sempre se focaram no seu real interesse, ou seja, naquilo que diria e faria o FED, claro!
            Os europeus do leste, pressionados tanto pela realidade como por seus pesadelos, não podiam imaginar por que os americanos deixariam que algo de mal lhes acontecesse. Não entendiam qual o benefício que a América teria por estar em conflito com os russos.
            A visão americana da Europa é um misto de indiferença e perplexidade e os estadunidenses não dão tanta importância assim à Europa, desde a Guerra Fria, assim como não dão a menor pelota para as reclamações esganiçadas de Dilma Roussef por causa da alegada ‘espionagem’ norteamericana sobre a correspondência pessoal da presidente ou sobre as atividades da Petrobrás.
            Desde a primeira Guerra do Golfo, o que importa para os americanos é o mundo muçulmano, com vários graus de intensidade. A Síria nunca foi o alvo, mas sim quem a está usando para tentar dominar o Oriente Médio e “varrer Israel do mapa”.
            Os americanos só não gostam mais de viajar para a Europa porque se incomodam quando têm que ouvir o que os EUA têm que fazer. Mas a percepção americana da Europa é a de que o continente é inútil, aborrecido e, em última análise, fraco e, pois, inofensivo. Assim, a Europa, bem como o Brasil, não chegam a receber muita atenção de Washington e a maioria não consegue entender o que europeus e brasileiros realmente querem...
            Os americanos também não precisam falar quatro idiomas para dirigir por 4 mil quilômetros, como os europeus, o que torna o diálogo leste-oeste uma comunicação caótica entre uma única entidade nacional e uma verdadeira torre de Babel. Os EUA são, além disso, um país unificado e com suas políticas, econômica, externa e de defesa, alinhadas e coerentes com seus objetivos. A Europa, ao contrário, nunca funcionou dessa forma, e, na verdade, vem de desintegrando desde 2008.
            Todavia, o acervo cultural e histórico da Europa é extraordinário e de extremo valor para a nossa cultura dominante no continente americano. A América é um bebê perto da anciã Europa e talvez, por isso, muitos povos americanos são desmemoriados, Brasil mais do que os EUA e esses mais do que muitos países hispanos e o Canadá.
            Fala-se muito da “relação transatlântica”, que nem sequer está prejudicada. Europeus vêm – e gostam muito de vir – para o Brasil e para os EUA, embora temam mais a insegurança de Pindorama. A recíproca também é verdadeira, com os ‘sucialistas’ brazukas preferindo ir mais para o norte de que para o leste...
            Mas os liames que os unem não são suficientemente robustos quando se trata de relações entre estados. A coisa é estranha, pois hoje viajamos a lazer, para a Itália, onde um dia nós fomos lá para combater o Terceiro Reich nacional socialista.
            Nesse contexto, fica realmente difícil estabelecer uma política comum ocidental com relação a Síria e muito mais complicado ainda decidir um estratégia sólida para o Atlântico Norte.
*Texto por Francisco Vianna, por e-mail, via Grupo Resistência Democrática

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