sexta-feira, 26 de abril de 2013

A esquerda caviar.

"Não vi um negro", escreveu o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues – talvez a única mente lúcida do Brasil na época – sobre a famosa "passeata dos cem mil" no Rio de Janeiro contra o regime militar, em 1968. O que mais lhe chamou a atenção na maior marcha de protesto daquele ano seminal da esquerda moderna (ou pós-moderna) foi a ausência quase completa de pobres, ou de gente com cara de pobre, em um movimento que se dizia a favor dos pobres e contra os ricos etc. "Não havia ali um único negro, um desdentado, um mísero torcedor do Flamengo", observou, intrigado. Nenhum operário, nenhum favelado, nem mesmo um morador de subúrbio. Apenas gente bonita e com todos os dentes no lugar, garotões e gatinhas da juventude dourada da zona sul carioca, bem-nascidos, bem-nutridos, de pele alva ou "bronzeados como um havaiano de cinema", desfilando seus slogans contra a ditadura, no que poderia muito bem, comentou Nelson, ser um comercial de dentifrício.
Ele sabia do que falava. "Como é marxista a nossa burguesia!", exclamava, com ponto e tudo, o jornalista e dramaturgo, que tinha o costume, talvez para colher material para suas peças e romances, de frequentar saraus de grã-finos, uma moda na época. Em um deles, escreveu em uma de suas crônicas, chegou a conhecer uma auto-proclamada "amante espiritual de Guevara" (!). Esta iria fazer companhia, no universo rodrigueano, a outras figuras icônicas da sociedade e especialmente da esquerda brasileira, como o "padre de passeata", a "freira de minissaia" etc. Nessas ocasiões, o autor de O Casamento pôde constatar a ilimitada admiração, que beirava o fanatismo ("só faltavam abanar o rabo como cadelinhas amestradas"), dos habitantes do grand monde pela figura de Marx, a qual somente rivalizava com a total ignorância que demonstravam pelas ideias do "Velho" (era assim que chamavam o fundador do soi-disant "socialismo científico", com a intimidade de alguém da família).

Nelson Rodrigues era um dramaturgo, um homem de teatro, mas suas crônicas, reunidas em livros como O Reacionário e A Cabra Vadia, estão longe de ser obra de fic
ção. Suas observações, escritas em estilo suculento, foram argutas e precisas, valem mais do que muita obra de sociológo que existe por aí. Assim como assistiu bestializado à Proclamação da República em 1889, o povo passou longe da passeata dos cem mil, e passou mais longe ainda da luta armada contra a ditadura militar. O historiador Marcelo Ridenti, em seu livro O Fantasma da Revolução Brasileira (publicado em 1993), apontou esse fenômeno: em um levantamento, ele constatou que entre os membros processados dos grupos terroristas de esquerda nos anos 60 e 70 (ALN, VPR, MR-8, VAR-Palmares etc.), 57,78% eram estudantes de classe média ou alta. Pouquíssimos podem ser considerados "operários" ou "trabalhadores". Enquanto isso, o povão, entusiasmado com o "milagre" econômico e com os dribles de Pelé e Rivelino na seleção tricampeã mundial de futebol no México, assistia indiferente, ou mesmo com franca hostilidade, às aventuras da esquerda armada (da qual, aliás, frequentemente era vítima). A conclusão de Ridenti, corretíssima, é que os grupos guerrilheiros não eram o oposto da elite, mas uma fração desta, uma espécie de "contra-elite". Um dos membros dessa elite guerrilheira que pegou em armas contra a ditadura foi Nelsinho, filho de Nelson Rodrigues. Outra foi uma tal de Dilma Vana Rousseff.

Não se trata de um fenômeno restrito ao Brasil. Sempre houve, em todos os países, um divórcio radical entre a esquerda e as massas populares. Apesar de nomes pomposos escolhidos para batizar os movimentos e partidos esquerdistas ao longo da História – "dos trabalhadores", "operário", "popular" etc. –, o povão, ou, para usar o jargão marxista, o "proletariado", sempre deu as costas à propaganda revolucionária e socialista, brandida quase sempre por membros desgarrados da elite. Basta ver a biografia dos principais líderes revolucionários. Lênin vinha da aristocracia rural russa (seu pai tinha inclusive um título de nobreza). Mao Tsé-tung era filho de proprietários de terras. Fidel Castro também. Sem falar no próprio Karl Marx, de origem burguesíssima, assim como seu amigo Friedrich Engels, rico herdeiro de fábricas de tecidos na Inglaterra. Todos vieram da classe dominante. (Não que ser do povo traga, em si, alguma virtude moral intrínseca: Stálin, por exemplo, era de origem proletária, assim como Lula – aliás, uma invenção da elite.) Mesmo assim, sempre se apresentaram como a "vanguarda" da "classe operária"... E isso em TODOS os movimentos e partidos de esquerda e de extrema-esquerda no mundo nos últimos cento e tantos anos. (Antes mesmo de Lênin e da Revolução Russa de 1917, tornou-se célebre o caso dos jovens anarquistas russos que, abandonando uma vida de luxo e conforto nas cidades, embrenharam-se no campo, tentando sublevar as massas. Foram expulsos a pontapés pelos camponeses. O mesmo aconteceu com Che Guevara na Bolívia, melancolicamente delatado pelos mesmos que dizia querer "libertar"...)

Por que estou dizendo tudo isso? Porque historicamente a esquerda, no Brasil e alhures, sempre insistiu em falar em nome do "povo". Desde os antigos comunistas, até os que se apresentam atualmente sob as mais diversas bandeiras, como "direitos humanos", indigenistas, feministas, ambientalistas, desarmamentistas, maconhistas, cotistas, gayzistas etc., os representantes desses movimentos alegam defender as camadas sociais mais desfavorecidas. Se os pobres concordam ou não com sua agenda política, é outro assunto.

Nada mais falso do que a ideia da esquerda como "representante do povo". Um exemplo recente: há alguns dias, em São Paulo, um jovem, Victor Hugo Deppman, foi assassinado a sangue-frio, quando chegava em casa, por um menor de idade, que roubou seu celular. A morte brutal e estúpida foi filmada pelas câmeras do condomínio, que deixaram claro que foi um homicídio covarde e sem sentido, pois a vítima estava rendida e não esboçou qualquer reação, e mesmo assim levou uma bala na cabeça. Imediatamente, elevou-se um clamor nacional em defesa da redução da maioridade penal e de repúdio à lei vigente, que garante a impunidade - o assassino, que completou 18 anos três dias após o crime, só poderá ficar no máximo três anos em uma instituição de amparo ao menor, de onde sairá com a ficha limpa. Quem ficou contra, inclusive com o "argumento" de que toda a comoção com o caso só ocorrera porque o jovem assassinado era "de classe média" etc.? O governo e a esquerda, claro. Já o povo – 93% dos paulistanos, que não moram todos no Morumbi ou em Higienópolis – quer a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rejeita a ideia do tiro na cabeça como forma de justiça social...

Eis o fato incontestável, que muitos “intelequituais” uspianos não querem encarar: a esquerda não representa o povo coisa nenhuma. Aliás, não representa ninguém, a não ser a si própria. Ela é, acima de tudo, um fenômeno da ELITE. O povo – e falo aqui dos mais pobres dentre os pobres – está simplesmente se lixando para o que dizem os esquerdistas. Mais: na quase totalidade dos casos, o povo é radicalmente contra as propostas da esquerda.

Façam um teste, se duvidam de mim. Experimentem fazer um plebiscisto sobre a maioridade penal aos 16 anos (ou aos 15, 14 etc.). Ou sobre pena de morte. Ou sobre legalização da maconha. Ou sobre casamento gay. Ou sobre aborto. Aposto o quanto quiserem que a grande maioria da população, sobretudo os mais pobres e que mais sofrem com a criminalidade e outros problemas, daria uma resposta diametralmente oposta ao que defendem o PT ou o PSOL.

Para ser mais preciso, imaginem uma consulta com a seguinte pergunta: "Você é a favor do casamento gay e da legalização da maconha?". Ou: "Você é a favor da liberação do aborto?". Preciso dizer que a resposta seria um NÃO bem redondo? Agora, troquem a pergunta para "Você é a favor da redução da maioridade penal?" Quem duvida que a resposta, nesse caso, seria um retumbante SIM? E quem pode negar que a resposta-padrão da esquerda diante desse fato ("é porque o povo é ignorante" etc.) trai, na verdade, um inegável ranço elitista, no pior sentido da palavra? (A opinião do povo só deve ser ouvida se coincidir com a da esquerda.) Afinal, de que “povo” falam os esquerdistas?

(A propósito: observem quem participa das marchas feitas pela esquerda, como a "marcha das vadias", a "marcha da maconha" etc. Notaram algum trabalhador em uma delas?)

A maioria da popula
ção brasileira, que trabalha, anda de ônibus e paga imposto, não tem tempo nem paciência para os delírios e platitudes esquerdistas. E, quanto mais é assim, mais a esquerda se diz a única e legítima representante das causas populares... Trata-se de uma falácia, de um óbvio embuste. Os esquerdistas sabem que o povo não tem nada de "progressista"; pelo contrário, é instintivamente conservador e "de direita". Por isso, nem falam mais em plebiscitos (como o do desarmamento em 2005, em que sofreram uma derrota humilhante). Em vez disso, resolveram mudar de tática, tentando enfiar suas propostas liberticidas de contrabando, via Congresso ou STF. Para os moradores das favelas e da periferia, rapagões e moçoilas criados na base de sucrilhos e toddyinho falando em seu nome e lhes dizendo o que é melhor para eles só pode ser piada. Para eles, os "oprimidos", os esquerdistas não passam de playboyzinhos entediados em busca de alguma "causa" para se entreterem e despejarem sua revolta juvenil. A esquerda não os representa.

Assim como não havia negros na "passeata dos cem mil", não há nada de "popular" nos slogans "progressistas" dos militantes politicamente corretos de hoje. Desconfio que, se fosse vivo, Nelson Rodrigues ficaria admirado ao ver o espetáculo surrealista da beautiful people do Leblon e de Ipanema falando em nome das massas. O carnavalesco Joãosinho Trinta tinha razão: "Pobre gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual". De miséria e de socialismo.

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