RESIGNADO-Um usuário de crack de 25 anos espera pelo transporte que o levará ao abrigo municipal. Ele aceitou a internação porque temia morrer do vício.
A boca ferida, maltratada pelo uso contínuo de cachimbos precários, era uma das poucas partes do rosto de R. que o cobertor marrom e sujo deixava entrever. O corpo miúdo poderia facilmente ser confundido com o de um garoto de 14 anos. Os passos que o conduziam para fora da Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, eram apenas resignados, não mais relutantes. Enquanto caminhava, R. experimentava momentos de lucidez nos quais tentava resumir sua trajetória. Aos 25 anos, viciado em crack, sem ter onde dormir, exceto a rua, ele enfrentava o quarto dia sem comer. No dia 19 de julho, foi encontrado e levado à força pela equipe da Secretaria de Assistência Social do município do Rio de Janeiro. “Se for a salvação para mim, eu vou. Sabe por quê? Porque eu tô vendo que se eu ficar aqui, fumando oito, nove pedras por dia, eu não vou aguentar mais. Eu vou morrer.” Antes das 10 horas da manhã, R. já embarcara numa das quatro vans da prefeitura que levaria os usuários de crack recolhidos ali à delegacia e, depois, a algum abrigo para tratamento de dependentes químicos.
A ação da Secretaria de Assistência Social carioca é estridente. Desde maio, três vezes por semana, os agentes sobem os morros da cidade que continuam sob domínio do crime organizado para levar, na marra, os dependentes de crack que povoam as cracolândias da cidade. ÉPOCA acompanhou uma dessas operações no final do mês passado. O trabalho só é possível porque é apoiado por policiais civis e militares, empunhando armas de grosso calibre. Antes dos agentes, o blindado da PM conhecido como “caveirão” sobe o morro. Há troca de tiros entre a polícia e traficantes. Abordados pelos agentes, os usuários costumam reagir de modo arredio. A resposta vem na mesma proporção. O porte físico avantajado e a experiência como segurança de boate, constantes entre os agentes da secretaria, possibilitam que eles terminem por dominar os dependentes, embora com dificuldades.
As operações já resultaram no acolhimento de 1.319 pessoas (1.065 adultos e 254 crianças e adolescentes) em cracolândias. Segundo a prefeitura do Rio, nas áreas onde os viciados são tirados das ruas, o índice de pequenos roubos e furtos costuma cair até 50% nos primeiros dias. Depois de levados das favelas, crianças, adolescentes e adultos têm destinos diferentes. Todos os menores de 18 anos encontrados, de quem o Estado passa a ser o tutor, ficarão cerca de três meses internados contra a própria vontade (e de sua família, eventualmente) em alguma unidade terapêutica da prefeitura. São casas com psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e grades. Grades por todos os lados. A prefeitura do Rio está convencida de que, sem elas, de nada adianta ter os melhores profissionais. A recuperação seria inviável. Ainda assim, nem sempre se consegue evitar a fuga dos pacientes. Para os adultos, a internação compulsória ainda não é a regra, embora já ocorra em alguns casos, sempre autorizados por um juiz. A prefeitura do Rio afirma que gostaria de adotá-la em larga escala, mas que ainda não encontrou um meio legal de promovê-la.
A medida de internação à força do Rio de Janeiro é pioneira, tem provocado polêmica, mas conquistado cada vez mais adeptos entre os gestores públicos. No Congresso, tramita um projeto de lei que propõe extinguir a necessidade de ação judicial para internar alguém à força. No governo federal, há autoridades simpáticas à ideia. Em São Paulo, onde há a maior cracolândia do país, depois de dois anos de uma política de convencimento de dependentes para que aceitassem voluntariamente ser tratados, a experiência carioca poderá ser repetida em breve. A Procuradoria-Geral da cidade deu um parecer favorável à internação compulsória de usuários de crack. A decisão agora cabe ao prefeito Gilberto Kassab, que já admitiu publicamente ver a internação forçada como uma resposta para o histórico problema do município. Estima-se que, pela cracolândia paulistana, perambulem quase 2 mil pessoas diariamente. A internação na marra funciona? Representa uma solução para as famílias que sofrem o drama de ter dependentes em crack?
*Saiba mais lendo a reportagem de Mariana Sanches, Matheus Paggi (texto) e André Valentim (fotos), com Eduardo Duarte Zanelato, na revista ÉPOCA, nas bancas.
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