Há mais de 200 anos, quem acaba são seus adversários, como a escravidão, o fascismo e o comunismo
Os Estados Unidos iam acabar.
Não nesta semana, mas há exatos 150 anos, depois que as tropas do Sul venceram em Manassas a primeira grande batalha da Guerra Civil.
Grandes políticos ingleses, bem como "The Economist" e "The Times" (pré-Murdoch), achavam que o presidente Lincoln forçara a mão com o Sul. Quatro anos e 620 mil mortos depois, a União foi preservada e acabou-se a escravidão.
Passou pouco mais de meio século e, de novo, os Estados Unidos iam acabar.
A Depressão desempregou 25% de sua mão de obra e contraiu a produção do país em 47%.
A crise transformou fascismo e nazismo em poderosas utopias reacionárias.
De Henry Ford a Cole Porter, muita gente se encantou com o ditador italiano Benito Mussolini. Dezesseis anos depois, as tropas americanas entraram em Roma, Berlim e Tóquio.
Em 1961, quando os soviéticos mostraram Yuri Gagarin voando em órbita sobre a Terra, voltou-se a pensar que os Estados Unidos iam se acabar.
Em 1989, acabou-se o comunismo.
A decadência americana foi decretada novamente em 1971, quando Richard Nixon desvalorizou o dólar, ou em 1975, quando suas tropas deixaram o Vietnã.
O dólar continua sendo a moeda do mundo, inclusive para os vietnamitas.
A última agonia, provocada pela exigência constitucional da aprovação, pelo Congresso, do teto da dívida do país, foi uma crise séria, porém apenas uma crise parlamentar.
Para o bem de todos e felicidade geral das nações, não só os Estados Unidos não se acabam, mas o que se acaba são os modelos que se opõem ao seu sistema de organização social e política.
No cenário de hoje, o ocaso americano coincidiria com a alvorada de progresso e eficácia da China.
Lá, o teto da dívida jamais será um problema. Basta que o governo decida.
Como lá quem decide é o governo, nos últimos cem anos o Império do Meio passou por dois períodos de fome que geraram episódios de antropofagia.
Hoje a China não tem os problemas dos Estados Unidos, afinal, nem desastre de trem pode ser discutido pela população.
Guardadas as proporções, o sistema político brasileiro seria melhor que o americano, porque não haveria aqui a crise parlamentar provocada pelo teto da dívida.
Se houvesse, o Brasil não teria quebrado nos anos 80 por ter tomado empréstimos dos banqueiros que ajudaram a criar a encrenca que hoje atormenta Washington.
Aquilo que parece uma crise da decadência é uma simples e saudável manifestação do regime democrático.
Quando os negros americanos foram para as ruas, marchando em paz ou queimando quarteirões, também temeu-se pelo futuro do país.
O que acabou foi a segregação racial.
Se hoje há uma crise nos Estados Unidos, ela não está nas bancadas republicanas ou mesmo na influência parlamentar do movimento Tea Party.
Eles defendem o que julgam ser o melhor caminho para o país.
A crise está em outro lugar, na negação, por um tipo de conservadorismo extremado, dos valores que fizeram da nação americana o que ela é.
Quando o governo Bush sequestrou suspeitos pelo mundo afora, levando-os para centros de tortura, e viu-se obrigado a soltar alguns deles porque não eram o que se pensava, aí sim, os Estados Unidos estavam em perigo.
*Elio Gaspari - Folha de São Paulo - 03/08/11
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