Cineasta rompe o silêncio e
denuncia como trabalha o “Fora do Eixo”, a seita que está na raiz da “Mídia
Ninja”: ela acusa a exploração de mão de obra similar à escravidão, a
apropriação indébita do trabalho alheio e ódio à cultura e aos artistas.
Beatriz
Seigner: cineasta rompe o silêncio e denuncia os métodos com os quais operam o
Fora do Eixo e Pablo Capilé.
Beatriz Seigner é cineasta (“Bollywood dreams —
Sonhos bollywoodianos”). Uma rápida pesquisa no Google indica a sua intimidade
com a área. Ela postou no Facebook um impressionantedepoimento sobre
a sua experiência com o tal “Fora do Eixo” — a ONG (ou sei lá que nome tenha)
comandada por Pablo Capilé, o chefão do grupo que está na origem da tal “Mídia
Ninja”, que vem sendo reverenciada por alguns bobalhões da imprensa como a
nova, moderna e mais aguda expressão do jornalismo.O depoimento é longuíssimo,
mas vale a pena ler. Beatriz sustenta, e os fatos que ela elenca parecem lhe
dar razão, que o tal Capilé é uma espécie de chefe de uma seita. O jornalismo
investigativo, se quiser, pode fazer a festa. A Mídia Ninja — que parecia
tanger todas as cordas do lirismo, coisa de jovens ousados dispostos a afrontar
os limites do conservadorismo —, como se pode depreender do texto de Beatriz, é
uma máquina ideológica muito bem organizada, azeitada, que obedece ao comando
político de um líder acima de qualquer questionamento: Capilé.Em seu
depoimento, Beatriz acusa o Fora do Eixo — que não tem existência legal e não
pode, portanto, ser acionado na Justiça — de: - apropriar-se indevidamente
do trabalho dos artistas; - de explorar uma forma moderna — ou
“pós-moderna” — de mão de obra escrava; - de passar a patrocinadores
públicos e privados informações falsas sobre a real dimensão do Fora do Eixo; -
de ameaçar as pessoas que tentam se desligar do grupo.Uma seita Eu,
confesso, ignorava — e não havia lido isso em lugar nenhum — que o Fora do Eixo
mantém “casas”, onde, vejam só, moram pessoas mesmo, mais ou menos como essas
seitas religiosas que estimulam os jovens a abandonar a família.Segundo
Beatriz, esses moradores não recebem salário nenhum — vivem com o que lhes
fornece o “coletivo” — e se dedicam integralmente ao Fora do Eixo: não têm
individualidade, não assinam seus trabalhos, não põem sua marca pessoal em
nada. Se deixam a casa, saem sem nada.
Isso tem
explicação. A cineasta acusa Capilé de ter enorme desprezo pela arte e pelos
artistas — parece que esse rancor é especialmente devotado aos livros (“uma
tecnologia ultrapassada”), em particular aos clássicos. Os abduzidos do Fora do
Eixo, que entregam graciosamente a sua mão de obra a Capilé, não têm tempo de
usufruir de bens culturais nem acham isso necessário: tudo pela causa.
Capilé:
incentivador da cultura ou chefe de uma seita que explora trabalho similar à
escravidão?
O primeiro contato com o “Fora do Eixo”
Conheci um representante da rede Fora do Eixo
durante um trajeto de ônibus do Festival de Cinema de Gramado de 2011, onde eu
havia sido convidada para exibir meu filme “Bollywood Dream – O Sonho
Bollywoodiano” e ele havia sido convidado a participar de um debate sobre
formas alternativas de distribuição de filmes no Brasil. Meu filme havia sido
lançado naquele mesmo ano no circuito comercial de cinemas, em mais de 19
cidades brasileiras, distribuído pela Espaço Filmes, e o rapaz me contava de
como o Fora do Eixo estava articulando pela internet os cerca de 1000
cineclubes do programa do governo Cine Mais Cultura, assim como outros
cineclubes de pontos de cultura, escolas, universidades, coletivos e pontos de
exibição alternativos, que estavam conectados à internet nas cidades mais
longínquas do Brasil, para fazerem exibição simultânea de filmes com debate
tanto presencialmente, quanto ao vivo, por skype. Eu achei a ideia o máximo. Me
disponibilizei, a mim e ao meu filme para participar destas exibições (…)
Remuneração?
Com relação à remuneração eles me explicaram que
aquele ainda era um projeto embrionário, sem recursos próprios, mas que podiam
pagá-lo com “Cubo Card”, a moeda solidária deles, que poderia ser trocada por
serviços de design, de construção de sites, entre outras coisas. Já adianto
aqui que nunca vi nem sequer nenhum centavo deste cubo card, ou a plataforma
com ‘menu de serviços’ onde esta moeda é trocada. E fiquei sabendo que algumas
destas exibições com debate presencial no interior de SP seriam patrocinadas
pelo SESC – pois o SESC pede a assinatura do artista que vai fazer a
performance ou exibir seu filme nos seus contratos, independente do
intermediário. E só por eles pedirem isso é que fiquei sabendo que algumas
destas exibições tinham sim, patrocinador. Fui descobrir outros patrocinadores
nos pôsteres e banners do Grito Rock de cada cidade. Destes eu não recebi um
centavo.
Os sustos de Beatriz
Meu primeiro susto foi quando perguntaram se podiam
colocar a logomarca deles no meu filme – para ser uma ‘realização Fora do
Eixo’, em seu catálogo. Eu disse que o filme havia sido feito sem nenhum
recurso público e que a cota mínima para um patrocinador ter sua logomarca nele
era de 50 mil reais. Eles desistiram.
O segundo susto veio justamente na exibição com
debate em um SESC do interior de SP, quando recebi o contrato do SESC, e vi que
o Fora do Eixo estava recebendo por aquela sessão, em meu nome, e não haviam me
consultado sobre aquilo. Assinei o contrato minutos antes da exibição e cobrei
do Fora do Eixo aquele valor descrito ali como sendo de meu cachê, coisa que
eles me repassaram mais de 9 meses depois, porque os cobrei, publicamente.
O terceiro susto veio quando me levaram para jantar
na casa da diretora de marketing da Vale do Rio Doce, no Rio de Janeiro, onde
falavam dos números fabulosos (e sempre superfaturados) da quantidade de
pessoas que estavam comparecendo às sessões dos filmes, aos festivais de
música, e do poder do Fora do Eixo em articular todas aquelas pessoas em todas
estas cidades. Falavam do público que compareciam a estas exibições e
espetáculos como sendo filiados a eles. Ou como se eles tivessem qualquer poder
sobre este público.
O mundo do pensador Capilé. Ou: Ele precisa de
duto, de esgoto
Foi aí que conheci pela primeira vez o Pablo
Capilé, fundador da marca/rede Fora do Eixo (…). Até então haviam me dito que a
rede era descentralizada, e eu havia acreditado, mas imediatamente, quando vi a
reverência com que todos o escutam, o obedecem, não o contradizem ou criticam,
percebi que ele é o líder daqueles jovens e que, ao redor dele, orbitavam
aqueles que eles chamam de “cúpula” ou “primeiro escalão” do FdE.
(…) Capilé dizia que não deveria haver curadoria
dos filmes a serem exibidos neste circuito de cineclubes (…) e que ele era contra
pagar cachês aos artistas, pois, se pagasse, valorizaria a atividade dos mesmos
e incentivaria a pessoa “lá na ponta” da rede, como eles dizem, a serem
artistas e não “DUTO”, como ele precisava. Eu perguntei o que ele queria dizer
com “duto”, ele falou sem a menor cerimônia: “Duto, os canos por onde passam o
esgoto”.
Eu fiquei chocada. Não apenas pela total falta de
respeito por aqueles que dedicam a maior quantidades de horas de sua vida para
o desenvolvimento da produção artística (e, quando eu argumentava, isso ele
tirava sarro dizendo “todo mundo é artista”’ao que eu respondia “todo mundo é
esportista também”) (…)
Ódio à cultura e aos livros
E o meu choque, ao discutir com o Pablo Capilé, foi
ver que ele não tem paixão alguma pela produção cultural ou artística, que ele
diz que ver filmes é “perda de tempo”, que livros, mesmo os clássicos (que
continuam sendo lidos e necessários há séculos), são “tecnologias
ultrapassadas” e que ele simplesmente não cultiva nada daquilo que ele quer
representar. Nem ele nem os outros moradores das casas Fora do Eixo (já explico
melhor sobre isso).
Ou seja, ele quer fazer shows, exibir filmes, peças
de teatro, dança, simplesmente porque estas ações culturais/artísticas juntam
muita gente em qualquer lugar, que vão sair nas fotos que eles tiram e mostram
aos seus patrocinadores dizendo que mobilizam “tantas mil pessoas” junto ao
poder público e privado, e que por tanto, querem mais dinheiro, ou privilégios
políticos.
A manipulação
Vejam que esperto: se Pablo Capilé disser que vai
falar num palanque, não iria aparecer nem meia-dúzia de pessoas para ouvi-lo,
mas se disserem que o Criolo vai dar um show, aparecem milhares. Ou seja, quem
mobiliza é o Criolo, não ele. Mas, depois, ele tira as fotos do show do
Crioulo, e vai na Secretaria da Cultura dizendo que foi ele e sua rede que
mobilizou aquelas pessoas. E assim, consequentemente, com todos os artistas que
fazem participação em qualquer evento ligado à rede FdE. Acredito que, como eu,
a maioria destes artistas não saiba o quanto Pablo Capilé capitaliza em cima
deles e de seus públicos.
As planilhas
[Capilé] diz que as planilhas do orçamento do Fora
do Eixo são transparentes e abertas na internet, sendo isso outra grande
mentira deslavada — tais planilhas não se encontram na internet, nem os
próprios moradores das casas Fora do Eixo as viram ou sabem onde estão. Em
recente entrevista no Roda Viva, Capilé disse que arrecadam entre 3 e 5 milhões
de reais por ano. Quanto disso é redistribuído para os artistas que se apresentam
na rede? O último dado que tive é que o Criolo recebia cerca de 20 mil reais
para um show com eles, enquanto outra banda desconhecida não recebe nem 250
reais, na casa FdE São Paulo.
Os patrocinadores
Mas seria extremamente importante que os
patrocinadores destes milhões exigissem o contrato assinado com cada um destes
artistas, baseado pelo menos no mínimo sindical de cada uma das áreas, para ter
certeza de que tais recursos estão sendo repassados, como faz o SESC.
A seita tem “casas”. Ou: Trabalho similar à
escravidão?
Depois desse choque com o discurso do Pablo Capilé,
ainda acompanhei a dinâmica da rede por mais alguns meses (foi cerca de 1 ano
que tive contato constante com eles), pois queria ver se esse ódio que ele
carrega contra as artes e os artistas era algo particular dele, ou se estendia
à toda a rede. Para a minha surpresa, me deparei com algo ainda mais
assustador: as pessoas que moram e trabalham nas casas do Fora do Eixo
simplesmente não têm tempo para desfrutar os filmes, peças de teatro, dança,
livros, shows, pois estão 24 horas por dia, 7 dias por semana, trabalhando na
campanha de marketing das ações do FdE no Facebook, Twitter e demais redes
sociais.
E como elas vivem e trabalham coletivamente no
mesmo espaço, gera-se um frenesi coletivo por produtividade, que, aliado ao
fato de todos ali não terem horário de trabalho definido, acreditarem no mantra
“trabalho é vida” e não receberem salário — e, portanto, se sentirem
constantemente devedores ao caixa coletivo, da verba que vem da produção de
ações que acontecem “na ponta”, em outros coletivos aliados à rede — faz com
que simplesmente, na casa Fora do Eixo em São Paulo, não se encontre nenhum
indivíduo lendo um livro, vendo uma peça, assistindo a um filme, fazendo
qualquer curso, fora da rede. Quem já cruzou com eles em festivais nos quais
eles entraram como parceiros sabem do que estou falando: eles não entram para
assistir a nenhum filme, nem assistem/participam de nenhum debate que não seja
o deles. O que faz com que, depois de um tempo, eles não consigam falar de
outra coisa que não seja deles mesmos. (…)
Expropriação do trabalho (…) reparei que aquela
massa de pessoas que trabalham 24 horas por dia naquelas campanhas de
publicidade das ações da rede FdE não assinam nenhuma de suas criações: sejam
textos, fotos, vídeos, pôsteres, sites, ações, produções. Pois assinar aquilo
que se diz, aquilo que se mostra, que se faz, ou que se cria é considerado
“egóico” para eles. Toda a produção que fazem é assinada simplesmente com a
logomarca do Fora do Eixo, o que faz com que não saibamos quem são aquele
exercito de criadores, mas sabemos que estão sob o teto e comando de Pablo
Capilé, o fundador da marca.
Sem existência legal (…) a marca do fora do Eixo
não está ligada a um CNPJ, nem de ONG, nem de Associação, nem de Cooperativa,
nem de nada — pois, se estivesse, ele [Capilé] seguramente já estaria sendo
processado por trabalho escravo e estelionato (…) por dezenas de pessoas que
passaram um período de suas vidas nas casas Fora do Eixo e saem das mesmas ao
se deparar com estas mesmas questões que exponho aqui, e outras ainda mais
obscuras e complexas.
Os escravos (…) o que talvez seja mais grave: os que
moram nas casas Fora do Eixo abdicam de salários por meses e anos — e,
portanto, não têm um centavo ou fundo de garantia para sair da rede. Também não
adquirem portfólio de produção, uma vez que não assinaram nada do que fizeram
lá dentro – nem fotos, nem cartazes, nem sites, nem textos, nem vídeos. E,
portanto, acabam se submetendo àquela situação de escravidão (pós)moderna
simplesmente porque não veem como sobreviver da produção e circulação artística
fora da rede.
Capilé incentiva que se abandone a universidade Muitas destas pessoas são
incentivadas pelo próprio Pablo Capilé a abandonar suas faculdades para se
dedicarem integralmente ao Fora do Eixo. Quanto menos autonomia intelectual e
financeira estas pessoas tiverem, melhor para ele.
Medo da
retaliação: o poder de Capilé E, quando algumas destas pessoas conseguem
sair, pois têm meios financeiros independentes da rede FdE para isso, ficam com
medo de retaliação, pois veem o poder de intermediação que o Capilé conseguiu
junto ao Estado e aos patrocinadores de cultura no país, e temem ser
“queimados” com estes. Ou mesmo sofrer agressões físicas. Já três pessoas me
contaram ouvir de um dos membros do FdE, ao se desligarem da rede, ameaças tais
quais “você está falando demais, se estivéssemos na década de 70 ou na Faixa de
Gaza, você já estaria morto/a.” Como alguns me contaram, “eles funcionam como
uma seita religioso-política, tem gente ali capaz de tudo” na tal ânsia de
disputa por cada vez mais hegemonia de pensamento, por popularidade e poder
político, capital simbólico e material, de adeptos. Por isso se calam. (…)
*Por Reinaldo Azevedo
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